sexta-feira, março 21, 2008

Quando o amor morrer dentro de ti

"Quando o amor morrer dentro de ti,
caminha para o alto onde haja espaço,
e com o silêncio outrora pressentido
molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
e neles ateia o fogo adormecido
que uma vez,
sonho de amor,
teu peito ferido
espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes o abrigo
e o nocturno calor que se debruça
sobre as faces brilhantes de soluços.
E se ninguém vier, ergue o sudário
que mil saudosas lágrimas velaram;
desfralda na tua alma o inventário
do templo onde a vida ora de bruços
a Deus e aos sonhos que gelaram.

(Ruy Cinatti 1915 - 1986, in "Poemas de Amor - antologia de poesia portuguesa", Inês Pedrosa)

A culpa é uma moça

" (...) fazia amor com ele com uma sinceridade que até então desconhecia. Chegava a premiá-lo com a desenvoltura aprendida no corpo de Dinis.
A um olhar masculino, pode ser que estas transposições pareçam insuportáveis da promiscuidade. É que os homens têm geralmente do acto sexual uma ideia estanque, factual, cheia de alíneas, como uma cerimónia de consagração. Ora as mulheres tendem a ver no exercício físico do amor uma das muitas encarnações possíveis da generosidade, que nelas faz as vezes da entrega. Isso habilita-as a distribuir as mesmas palavras de amor e os mesmos gestos a homens diferentes, sem escândalo íntimo nem confusão alguma; o vocabulário do amor é curto para a disponibilidade que as anima. É nas minúncias da pele que as diferenças e as vertigens se lhes cavam; na realidade, é até provável que sejam mais pródigas em juras e carinhos para com o menos amado. Porque a culpa é feminina (...)."


INÊS PEDROSA

quinta-feira, março 20, 2008


Páscoa Feliz!


Risos Patetas

Dúvida colocada no site das Finanças:

"Sou sócio do Benfica e estou a fazer a minha declaração de IRS. Como pago a quota de sócio todos os meses, devo colocar o Benfica como meu dependente? "

Resposta das Finanças:

"Claro que não. Só pode colocar dependentes na Declaração de IRS quem ganhou alguma coisa em 2007. No seu caso, uma simples Declaração de Isento é o suficiente.

quarta-feira, março 19, 2008

By the end of the day...




Custa sempre perder um amigo, seja na sequência das nossas acções ou de reacções a atitudes terceiras. Há qualquer coisa de inconsolável, no acto de vermos aquela pessoa virar as costas e seguir outro caminho que já não acompanharemos.


Quando um amigo morre subitamente e depois de ultrapassado o choque de aceitar os maus figados do destino, sentimo-nos acalentados na ideia de que enquanto ele partilhou o nosso quotidiano, aproveitamos ambos de todo o carinho, a responsabilidade, a alegria, a partilha que o facto de gostarmos um do outro encerra. Pode já não estar entre nós, mas fica sempre presente nas memórias que partilhamos entre outros amigos, nas fotografias, nas frases que passam em flashback com os sorrisos dele.


Perder alguém por desistência não tem nobreza, melancolia ou tempo que console. Desistir de alguém em prol do nosso bem estar, pode ser uma atitude sensata e adulta, mas não é um gesto que acalme o espírito. Mais do que a dor da opção tomada, o que mais marca é a raiva da desilusão. Quando genuinamente gostamos de alguém que guardavamos acima de qualquer mácula e essa pessoa se revela em atitudes tristes, desrespeitosas, cínicas e até cruéis, há uma parte de nós que secumbe de peito aberto ao golpe da espada. Porque não esperavamos, porque não se quer acreditar, porque nunca na vida seriamos assim enganados!

Procuramos justificações, discutimos para nós razões, negamos até á ultima que possa ser verdade, até que exaustos da espera da comprensão ou do esclarecimento apaziaguador, que tentamos encontrar a custo, nos vemos obrigados a aceitar.
É por isso que se perdoa tudo a um amor: a traição, o crime, os maus tratos, a solidão mas é tão dificil esquecer quando se joga fora uma amizade.

Pai


Hoje é dia do pai e por alguma razão triste não tenho que dizer. Não reconheço as palavras que sinto atropelar-me, porque não me reconheço em ti. Sou tua filha, eu sei. A natureza não nos deixa negar.
Sei que brevemente irás partir e eu não chegarei nunca a dizer o quanto gosto de ti e o quanto te admiro, perdida na absoluta incapacidade de um abraço.
Mas hoje, avô, desejo-te um feliz dia do Pai, com um abraço apertado, ainda que virtual mas que condensa todo o amor que tenho mas não consigo mostrar.
Gosto muito de ti pai!

terça-feira, março 18, 2008

Xafarix ás quintas ou os psicadélicos dos 30

Sexo Oral


"Primeiro a tua língua molha o meu coração, num vagar de fera.
Estendo aurículas e ventrículos sobre a mesa, entre os copos que desaparecem.
Não há mais ninguém no bar cheio de gente.
Abres-me agora os pulmões, um para cada lado, e sopras.
Respiras-me.
O laser das tuas palavras rasga-me o lobo frontal do cérebro.
A tua boca abre-se e fecha-se, fecha-se e abre-se, avançando por dentro da minha cabeça.
As minhas cidades ruem como rios, correndo para o fundo dos teus olhos.
O tempo estilhaça-se no fogo preso das nossas retinas.
O empregado do bar retira da mesa o nosso passado e arruma-o na vitrina, ao lado dos exércitos de chumbo.
Entramos um no outro, abrindo e fechando as pernas das palavras, estremecendo no suor dos olhos abraçados,
fazendo sexo com a lava incandescente dessa revolução imprevista a que damos o nome de amor."


Inês Pedrosa

Tears Dry on Their Own

"El único amigo que nunca miente es el silencio. "

Jorge Martinez

Ar(dor) do meu amor


“Desvairada, ternamente desvairada no corropio de mim. De mãos que sobem á sucapa pelos caminhos a nú da noite.
Gomos que mastigas no beijo, que se consente,
Repete, repele
Agarra.
Mordo-te a nuca e escalo-te a pele que geme, que soluça que marca a sombra do que não há.
Repito o teu nome, uma e outra vez e tu soluças, e choras em arco-iris.
Quero-te minha
Morta de tudo que não seja eu.
A parede branca e fria
Escorre a humidade de nós,
Grito-te,
Enlaço-te,
Abraço-me a ti,
Mas tu não devolves...

Mordo-te a boca e entrego-me no silêncio da ausência de respiração,
Contenho-te,
Embalo-te,
Como-te sofregamente.

Tu aceitas,
Tu olhas e não falas.
Chamo-te, insulto-te,
Rebento-me em ti
E tu calas.
Choro
Tu sorris.
Aconchego-te.
Embalo-te.

Tu deitas-me.
Tu tapas-me.
Tu beijas-me.
Tu partes.

Vejo-te o corpo nú trémulo
Ás marcas de mim em ti,
O teu ventre cheio,
As costas que não voltas,
Para não voltares em mim.
Tu não és
Tu és Outono quente e doce e morno
Eu sou verão temporal
Tu és verde relva macia e fresca
Eu sou areia áspera e morta,
Tu és dele.
Eu sou teu."

Dou a mão à palmatória...mas não batas muito.

"É meu!


"De entre todos os sentimentos que existem, o pior de todos é – e peço já desculpa aos outros – o sentimento de posse.
As pessoas gostam de ter, de dizer que é meu e de preferência pagarem a pronto. Portugal não gosta de alugar. Se tiver dinheiro, o português compra, mesmo que para isso tenha que fazer mais um esforço para pagar um empréstimo a 30 anos e no fim dizer que: "É meu!".
Recebe-se alguém em casa, vai-se mostrando as divisões e a primeira pergunta que nos fazem é: "Mas isto é teu?" E com a tristeza de um pescador que vem do mar sem nada na rede, encolhemos os ombros e dizemos: "Antes fosse, mas não. É alugada!".

Os portugueses gostam de dizer "É meu!" e quem alugar ou comprar a leasing - um carro por exemplo - é olhado com desconfiança e até, deixem cá ver, menosprezo.
A vizinha do lado comenta com a outra no parapeito da varanda:
"Já viu o carro novo do vizinho da frente que chegou esta semana? e mesmo que não o saiba, esta, de forma viperina vai dizendo: "Pois, pois, deve ter sido comprado a leasing. E assim também eu!" Como se a leasing fosse batota.
De resto, ao mínimo sinal de rápida ascensão financeira, é incontornável que o empresário que teve sorte com o negócio que criou e que à custa disso já comprou uma vivenda e mudou de carro duas vezes este ano, está - pois com certeza! - "Está mas é metido na droga!". A casa dele tem piscina! - Isso é droga! – Comprou agora um barco! – Droga é o que é! – Foi de férias com a família para os Alpes! – Não tenha dúvidas que é droga!

Por isso, se isto neste plano é assim, imaginem quando o sentimento de posse se alastra ao foro sentimental. É pior ainda. Com uma vantagem. Se rapidamente conquistarmos alguém ou dermos mostras de que temos cada vez mais casos bem-sucedidos "aquele ali anda sempre com mulheres bonitas!" serão poucos aqueles que dirão, que "andamos metidos na droga". E isso é bom. Se bem que para mim, se eu andasse metido com a Charlize Theron, bem que me podiam chamar o " Pablo Escobar de Campolide" que eu não me importaria. Mas adiante.

O sentimento de posse manifesta-se quando acabamos uma relação – reparem que fomos até nós que o fizemos – e passado uns tempos, quando a vemos com outro, não sei porquê, mas ficamos com um formigueiro nos pés que deus me livre. Na verdade, aqui entre nós – e agora baixe o jornal que esse senhor do lado está a ler isto – o que nos agradaria, era ver aquela palerma que nós deixámos – nós, ouviram bem? - aos rebolões pela rua, moribunda, chorando pelos cantos a clamar o nosso regresso. E o que é que acontece? Exactamente o contrário. Está tão melhor do que nunca que até parece que lhe demos saúde. E demos.
E assim, quando alguém nos diz :" olha, ontem encontrei a tua ex-namorada ás compras no chiado?, à nossa imediata pergunta de " Como é que ela está?" nada melhor do que nos responderem:" Tão diferente que não imaginas. Mais gordita, mal tratada, uma sombra daquilo que era no teu tempo! E por mais que nos custe reconhecer – e custa - ficamos contentes ao ouvir isto como se disséssemos "Safei-me de um bom estafermo!".

O sentimento de posse é isto. É mau. Mete vergonha. Devia ser banido, mas existe. Mas ao contrário do que acontecia até aqui – e isto é pior ainda - poucos são aqueles que ao saberem-no, dizem : "É meu!"


Fernando Alvim

segunda-feira, março 17, 2008

Metáforas

"No passado, escrevi um poema que começava assim: "sinto a lamina do teu ciúme no meu peito" - era uma metáfora, claro.E nao suspeitei. Agora, que me espetaste a faca de descascar batatas entre as costelas, único desfecho lógico para o nosso amor; agora, que sinto mesmo a lamina e o sangue morno a alastrar-me na camisa, sei, finalmente e tarde demais, a fraca expressividade das metáforas.Por isso, se ainda gostares um bocado de mim, pede para, na segunda edição, alterarem o verso para: "sinto o teu ciume como uma lamina no meu peito". "

Jose Luis Peixoto

P.S. Quero um velório assim...


Quando se junta um irlandês impetuoso, apaixonado, terno e imprevisivél com uma míuda meia perdida, vulnerável, trapalhona, desastrada e inconstante, e se adiciona a um amor que parece perfeito, uma morte por si só cortante,encontramos os ingredientes para uma história de amor no mínimo divertida e contagiante.

P.S. I love you, não é um filme para se assistir como programa de um date. Se, como eu tem lágrima solta, e não consegue conter o seu impêto romântico e as toneladas de suspiros que incomodam quase tanto como os baldes de pipocas vizinhos, sugiro que guarde este filme para assistir no recato do lar, munida de inúmeros Kleenex, baldes de gelados (se for essa a sua panca), e um edredon de penas.
Caso não siga a minha sugestão e resolva levar companhia até á sala de cinema mais perto de si, assegure-se que leva uma amiga de peito, ou de outro modo poder ter que lidar com um amigo meio baralhado sem saber o que fazer e que passará parte da noite a indagar-se sobre qual foi a parte que ele não percebeu, ou a tentar intuir que raio achamos nós tão comovente.
A verdade é que este filme é giro. Giro sim. Vai da comoção á gargalhada brutal num ápice de segundo e mesmo os momentos tristes são carregados de um humor negro, que a vida encerra em si e que não raras vezes nos faz rir, quando o assunto não é connosco.
Confesso que não consegui reter um sorriso maldoso, quando a meio do filme me lembrei das circunstâncias da morte, do pai de uma ex-fantasma do homem que eu amava, engasgado com um bocado de bife. É cruel, eu sei, mas há momentos em que somos capazes de piores coisas.
PS – I Love you é um filme sobre o luto,ou aquilo que seria, a meu ver, o luto ideal. Nada nos prepara para a perda de quem se ama, seja um marido, uma mãe, um filho, um amigo. Seja à custa da morte, ou da simples despedida circunstâncial. Gerry, assumindo que teria que partir, resolveu fazer uma despedida à sua maneira, passando rasteira ao tempo e à imaterialidade da ausência que leva ao esquecimento e fez-se presente. Nesse percurso tenta preparar a mulher que ama, para viver sem ele, para aceitar a cruel realidade de ter que recomeçar de novo, para lhe mostrar de que forma pode reviver as memórias deles sem que tal seja sinónimo constante de desespero ou infelicidade.

Através de cartas com o Post Scriptum mais perfeito, ele determina passos que Holly deverá seguir, ao jeito dos Jogos de Pista feitos por qualquer escuteiro e com ajuda da mãe de Holly e das suas amigas assegura-se que ela se encontra na sua ausência. (Na minha caracteristica mania de argumentista de trazer por casa, descobri logo a forma de entrega das ditas cartas...risos).

Gostei da ilustração da forma como ela fez gere os primeiros tempos de dor e desepero que a ausência daquele que amamos comporta: uma falta de ar, a sensação de dor obtusa presa ao peito e que o mais pequeno grão de pó de qualquer lembrança rebenta numa enchurrada de loucura e demência que não se compraz com canones comportamentais ou exigências de civilidade. A loucura na dança dela, vestida com a roupa que era dele é uma forma cómica de mostrar como fica um coração partido e até que ponto o amor é mesmo rídiculo.

Para além de Gerry e Holly esta história simples fala-nos também da dificuldade de uma mãe digerir a dor que um filho sente. Da inutilidade dos nossos afectos ou palavras, da raiva que encerra vermos que o nosso filho segue os nossos passos e o único que lhe poderemos garantir é que efectivamente ele vai mesmo ter que sofrer e que na solidão dessa dor ele encontrará a companhia de outros que estão no mesmo barco.

Eu chorei. Comovi-me, revendo-me nas cinzas daquele amor. A verdade é que me ajudou a perceber que o meu luto tinha terminado. Que as memórias estavam arrumadas, que o ponto final colocado permitia um ínicio de parágrafo bem mais bonito e iluminado.

Resumindo: É um belo filme de gaja e eu não me importavava nada de encontrar um Irlandês assim!!! Garanto que não o levava a ver este filme, a menos que seja daqueles que também chora nos filmes e que nos derretem tanto.
Realização: Richard LaGravenese

1st date milestones

"Como é que te chamas?
Começo por pensar que todas as pessoas são iguais. Talvez por comodidade, talvez por segurança, começo por supor que todas as pessoas, na sua infinita variedade de passados, presentes e futuros, são iguais.
É partindo desse pressuposto que digo nós. Não o nós de apenas eu e tu, não o nós de país ou língua, mas o nós meu, teu e deles, de países e línguas, de todos aqueles que não nos estão a ouvir.
E digo: nós temos um mundo no nosso interior.
Digo: é fascinante a história de tudo aquilo que fomos, que passou e que nunca foi esquecido porque nunca foi identificado. Sem que nunca tenha sido arquivado de uma forma consistente, catalogado ou sequer registado, acabamos por chamar caos ou alma a esse mundo.
Na fila do supermercado ou numa esplanada, Junho, acabamos por chamar-lhe pensamento. E mesmo durante o instante em que dizemos essa palavra, pen-sa-men-to, somos assaltados por uma sucessão de frases, sobrepostas às vezes, ou por imagens, ou por melodias, ou por palavras soltas, ou por tudo isto, sobreposto, misturado, em luta ou em harmonia.
Onde é que nos encontrámos antes?
Tiramos fotografias para vermos quando formos mais velhos, para não esquecermos. Nesse mundo que existe por trás dos olhos, é impossível tirar fotografias. É impossível filmá-lo.
As palavras são insuficientes porque variam consoante a voz que as canta. As palavras escritas, a verem-nos desde o papel, são muito diferentes daquelas que, dentro de nós, se desfazem. Às vezes, são como pássaros mortos na palma da mão. Outras vezes, são como a sua sombra. E, no entanto, escrever é falar para esse interior. Coloca uma ponte entre palavras e palavras, irmãos que se encontram. As palavras escritas no papel atravessam a pele e são despejadas directamente, com um ritmo, nesse mundo sem fronteiras que cada um de nós transporta.
São como soldados a saltarem da parte de trás de um camião. Seriam necessárias muitas reticências se conseguíssemos escutar cada pormenor desse interior.
É neste ponto que se coloca o problema da atenção. Temos olhos e, quanto à atenção, acontece o mesmo de quando olhamos para a distância e, a partir de certa altura, os contornos fogem dos objectos. Nesse nosso mundo/caos/alma, suponho que exista também uma distância: imagens que passam lá muito longe, por trás destas que passam logo aqui, palavras que passam onde apenas conseguimos ver vultos.
Gosto da cor dos teus olhos.
Mergulhar no pensamento pode ser como mergulhar em contos infantis, podemos ser uma espécie de Alice deslumbrada. Podemos também encontrar masmorras e prisões perpétuas. Depende daquilo que procurarmos. Mais incrível do que não termos sempre esta consciência de nós próprios é o tão pouco que temos esta mesma consciência em relação aos outros.
Está uma mulher sentada à nossa frente no autocarro, está o nosso pai, estás tu, e não somos sempre capazes de imaginar que, depois do rosto, ou sobre o rosto, invisível, está um choque frontal de palavras, está uma intermitência de frases, está uma imagem fixa, melodia, timbre de voz, etc. Apesar de já ter sido usado neste texto, pensamento parece-me um termo desadequado porque implica atenção. Estas palavras e imagens e melodias organizam-se em enxame. Mesmo quando oferecemos a atenção ao mundo, elas continuam lá, dentro de nós como se estivessem à nossa volta.
Posso tocar-te os lábios?
Cada palavra escrita alimenta-se dessas muitas palavras que a formam, cada palavra escrita é uma condensação. Cada palavra dita é feita da organização dessas palavras, mesmo que. Mesmo que, por vezes, se interrompam.
Posso soprar-te os lábios?
É agora que pergunto: o que é a memória? Um sentido poderia defender que as palavras e as coisas que nos constituem seriam viajantes, seguiriam movimentos – um pouco como os cometas, os astros. Desse modo, talvez fosse possível estabelecer um cálculo que pudesse prever cada ideia, palavra, imagem, etc. Seria assim, fácil, não fosse a circunstância de esse mesmo mundo existir com outro, depender dele – aquele que tem árvores, cidades e lugares concretos, aquele que está à nossa volta. Esse mundo que chamamos quando dizemos mundo e que, no entanto, é o encontro de todas as nossas solidões. Porque, mesmo que não procuremos palavras, acabamos por desconfiar que a incomunicabilidade absoluta existe, até entre nós e nós próprios.
Ainda assim, somos capazes de encontrar muitas justificações para continuar os mesmos equívocos, para sermos incertezas vestidas de fatos, gravatas, ou tailleurs, escolhidos segundo critérios que aprendemos.
Construir sistemas foi a parte mais fácil da nossa tarefa. Encontrar nome para os seus significados será outra das partes. Até lá, essas definições permanecerão enterradas por baixo daquilo que apenas podemos suspeitar quando nos detemos perante um horizonte ou perante uma cena de devastação.
Olhar dessa maneira é um sentido que pertence às crianças, como a reflexão verdadeira é um sentido que pertence aos anciãos. Por isso, somos crianças paradas no extremo de um miradouro, de um cabo sobre o oceano. Tentamos imaginar o universo. Tentamos imaginar o infinito sem conseguirmos perceber que, no infinito do universo, existe um número infinito de mundos, todos eles infinitos em si, comportando mundos infinitamente. Depois, nos intervalos dessa incapacidade, encontramo-nos e somos funcionais. Cumprimentamo-nos à chegada e despedimo-nos à partida.
A civilidade existe para nos guiar mas, ao mesmo tempo, acaba por nos desviar de nós próprios, acaba por dificultar que nos aproximemos de dizer aquilo que é evidente apenas para cada um de nós. Não é difícil concluir que são muito mais as palavras que não podemos dizer do que aquelas que conhecemos. Há fronteiras que ainda não sabemos ultrapassar, que estão connosco, que são nós.
Posso beijar-te?"

José Luís Peixoto

domingo, março 16, 2008

V. em sonho

“O corpo frágil e redondo. O sorriso marmóreo e angelical. O púbis desnudo indicando nossos desejos, satisfeitos no seio da onírica intimidade. Falamo-nos incansavelmente, e por fim, sem dramas acabo por admitir que havia ficado ainda mais amargo e calado depois da brusca partida. (…) Reinventar-te foi reviver novamente aquela paixão perdida. Tantas pessoas são o que gostaríamos apenas no mundo dos sonhos e tantas outras nunca existiram doutro modo. Pouco importava. Foi o nosso encontro mais doce. Sei que continuas existindo. “

Orfeu B

Efeitos secundários...

...a emoção pode causar reacções alérgicas e os espirros podem ser contagiosos...