"Então, certa tarde, veio ter comigo, numa festa, uma mulher em avançado estado de imponderabilidade. Tinha tão pouca substância que a brisa corria através dela, como através de uma cortina. A leve substância de que era composta estava, contudo, maravilhosamente bem distribuída e organizada.»
José Eduardo Agualusa na revista Pública, crónica de 4 de Maio de 2008
sexta-feira, maio 30, 2008
quinta-feira, maio 29, 2008
Dolce Vita
Dolce vita
Ele já tinha reparado nela.Partilhavam uma zona de alimentação de um centro comercial.Tinha-lhe admirado a escultura perfeita do corpo e o olhar onde cabia o mundo.Estava sempre acompanhada,passando os fins de tarde a estudar e a tomar notas.Um dia,com a colega ausente,por inexplicável magia ficaram de cadeiras coladas.Ela levantou-se,pedindo-lhe com doçura para zelar dos livros e do portátil,enquanto ia á casa de banho,concluindo com um sorriso terno e com a promessa de breve regresso.
Ele esperou,mirando e remirando os livros.Ela voltou com o sorriso a incendiar-lhe a alma,agradeceu e começaram a falar.A propósito de nada,falaram de tudo.
Era estudante de medicina,faltando-lhe dois anos para terminar o curso,sendo natural de uma cidade minhota.
As horas passaram rápido e a esse dia outros se sucederam,com raras intermitências,provocadas pela incomoda,mas involuntária presença da colega.Uma esdrúxula magia instalou-se e sedimentou-se.Trocavam sorrisos e risos,ouviam-se,confidenciavam estados de alma,mergulhavam nos caboucos das suas vidas.
Provaram o fast-food,enquanto ela perorava sobre os malefícios daquele,demonizando-o e tragando-o,misturando sentenças médicas,com nacos de bom humor.E ria,ria muito.
Um dia,quando já tinham partilhado longas horas de conversa e aferido os sentimentos na distancia de um fim de semana,ele convidou-a para um jantar formal,longe do lugar onde tudo desabrochara.Ela desenhou um sorriso atento e pela primeira vez,sem responder ao convite,olhou para o dedo anelar da mão direita dele,onde repousava uma alva aliança,questionando o significado de tudo aquilo.
Ele explicou tudo,com tocante sinceridade e absoluta veracidade.Desnudou a alma,assumindo que não conseguia despir aquele objecto metálico,frio na forma,mas escaldante de conteúdo,porque prenhe de memorias e sentimentos vivos.Falou-lhe do tempo e do que por ela sentia.Ela ouviu e sorrindo sempre,disse que ia pensar em tudo.Despediram-se com um beijo meigo,marcando encontro para o dia seguinte.
Ele esperou.Ela não estava.Ele esperou muito.Ela não veio.
À noite,na hora do lobo,o telemóvel tocou.Era ela.Pediu desculpa pela ausência.Por momentos,aquela voz que ele tanto gostava,voltava a fulgurar a noite,dilacerando-lhe a tristeza.
Disse que tinha reflectido muito e que concluiu ser melhor não se verem mais,porque não queria sofrer,que não gostava de esperar.Ele argumentou,rebateu,propôs um encontro esclarecedor,definindo barreiras e pedindo-lhe tempo.Ela não aceitou a proposta,porque dizia que temia envolver-se mais e mais.Deixou em aberto a questão do tempo.
Ele voltou ao centro comercial,mas ela não mais voltou.O mundo tornou-se mais desinteressante e o colorido do centro comercial tornou-se plumbeo cerrado.
Um dia ele espera chegar e vê-la rodeada de livros,sorrindo para ele,com aquele sorriso que lhe mima a alma,com aqueles olhos onde cabe o mundo,com o langor melifluo do cio.
Ele sente a falta dela.Eu sinto a falta dela.
Superpoderes
Ele já tinha reparado nela.Partilhavam uma zona de alimentação de um centro comercial.Tinha-lhe admirado a escultura perfeita do corpo e o olhar onde cabia o mundo.Estava sempre acompanhada,passando os fins de tarde a estudar e a tomar notas.Um dia,com a colega ausente,por inexplicável magia ficaram de cadeiras coladas.Ela levantou-se,pedindo-lhe com doçura para zelar dos livros e do portátil,enquanto ia á casa de banho,concluindo com um sorriso terno e com a promessa de breve regresso.
Ele esperou,mirando e remirando os livros.Ela voltou com o sorriso a incendiar-lhe a alma,agradeceu e começaram a falar.A propósito de nada,falaram de tudo.
Era estudante de medicina,faltando-lhe dois anos para terminar o curso,sendo natural de uma cidade minhota.
As horas passaram rápido e a esse dia outros se sucederam,com raras intermitências,provocadas pela incomoda,mas involuntária presença da colega.Uma esdrúxula magia instalou-se e sedimentou-se.Trocavam sorrisos e risos,ouviam-se,confidenciavam estados de alma,mergulhavam nos caboucos das suas vidas.
Provaram o fast-food,enquanto ela perorava sobre os malefícios daquele,demonizando-o e tragando-o,misturando sentenças médicas,com nacos de bom humor.E ria,ria muito.
Um dia,quando já tinham partilhado longas horas de conversa e aferido os sentimentos na distancia de um fim de semana,ele convidou-a para um jantar formal,longe do lugar onde tudo desabrochara.Ela desenhou um sorriso atento e pela primeira vez,sem responder ao convite,olhou para o dedo anelar da mão direita dele,onde repousava uma alva aliança,questionando o significado de tudo aquilo.
Ele explicou tudo,com tocante sinceridade e absoluta veracidade.Desnudou a alma,assumindo que não conseguia despir aquele objecto metálico,frio na forma,mas escaldante de conteúdo,porque prenhe de memorias e sentimentos vivos.Falou-lhe do tempo e do que por ela sentia.Ela ouviu e sorrindo sempre,disse que ia pensar em tudo.Despediram-se com um beijo meigo,marcando encontro para o dia seguinte.
Ele esperou.Ela não estava.Ele esperou muito.Ela não veio.
À noite,na hora do lobo,o telemóvel tocou.Era ela.Pediu desculpa pela ausência.Por momentos,aquela voz que ele tanto gostava,voltava a fulgurar a noite,dilacerando-lhe a tristeza.
Disse que tinha reflectido muito e que concluiu ser melhor não se verem mais,porque não queria sofrer,que não gostava de esperar.Ele argumentou,rebateu,propôs um encontro esclarecedor,definindo barreiras e pedindo-lhe tempo.Ela não aceitou a proposta,porque dizia que temia envolver-se mais e mais.Deixou em aberto a questão do tempo.
Ele voltou ao centro comercial,mas ela não mais voltou.O mundo tornou-se mais desinteressante e o colorido do centro comercial tornou-se plumbeo cerrado.
Um dia ele espera chegar e vê-la rodeada de livros,sorrindo para ele,com aquele sorriso que lhe mima a alma,com aqueles olhos onde cabe o mundo,com o langor melifluo do cio.
Ele sente a falta dela.Eu sinto a falta dela.
Superpoderes
quarta-feira, maio 28, 2008
As minhas lembranças sabem a vício
"E arranquei a página da agenda com o teu nome e o teu número de telefone. Veio a seguir Abril e depois o Verão. Vi nascer a flor da tremocilha e das buganvílias adormecidas, vi rebentar o azul dos jacarandás em Junho, vi noites de lua cheia em que todos os animais nocturnos se chamavam rãs, corujas e grilos, e um espesso calor sobre a devassidão da cidade.
E já nada disto, juro, era teu.E foi assim que descobri que todas as coisas continuam para sempre, como um rio que corre ininterruptamente para o mar, por mais que façam para o deter.
Sabes, quem não acredita em Deus, acredita nestas coisas, que tem como evidentes. Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos; acredita na integridade da água, do vento, das estrelas.
Eu acredito na continuidade das coisas que amamos, acredito que para sempre ouviremos o som da água no rio onde tantas vezes mergulhámos a cara, para sempre passaremos pela sombra da árvore onde tantas vezes parámos, para sempre seremos a brisa que entra e passeia pela casa, para sempre deslizaremos através do silêncio das noites quietas em que tantas vezes olhámos o céu e interrogámos o seu sentido.
Nisto eu acredito: na veemência destas coisas sem principio nem fim, na verdade dos sentimentos nunca traídos.E a tua voz ouço-a agora, vinda de longe, como o som do mar imaginado dentro de um búzio. Vejo-te através da espuma quebrada na areia das praias, num mar de Setembro, com cheiro a algas e a iodo.
E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros.
Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas ilusões de que tudo podia ser meu pra sempre. "
Miguel Sousa Tavares in "Não te deixarei morrer, David Crocket"
E já nada disto, juro, era teu.E foi assim que descobri que todas as coisas continuam para sempre, como um rio que corre ininterruptamente para o mar, por mais que façam para o deter.
Sabes, quem não acredita em Deus, acredita nestas coisas, que tem como evidentes. Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos; acredita na integridade da água, do vento, das estrelas.
Eu acredito na continuidade das coisas que amamos, acredito que para sempre ouviremos o som da água no rio onde tantas vezes mergulhámos a cara, para sempre passaremos pela sombra da árvore onde tantas vezes parámos, para sempre seremos a brisa que entra e passeia pela casa, para sempre deslizaremos através do silêncio das noites quietas em que tantas vezes olhámos o céu e interrogámos o seu sentido.
Nisto eu acredito: na veemência destas coisas sem principio nem fim, na verdade dos sentimentos nunca traídos.E a tua voz ouço-a agora, vinda de longe, como o som do mar imaginado dentro de um búzio. Vejo-te através da espuma quebrada na areia das praias, num mar de Setembro, com cheiro a algas e a iodo.
E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros.
Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas ilusões de que tudo podia ser meu pra sempre. "
Miguel Sousa Tavares in "Não te deixarei morrer, David Crocket"
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