sábado, fevereiro 16, 2008

Uma boca desarmada



Não é todos os dias que se tem a oportunidade de cometer o atrevimento de abrir uma garrafa com um vinho de 137 anos, sem se saber ao que se vai. Ao longo dos vários anos em que me dedico a este bichinho dos vinhos já tive ocasião de provar grandes vinhos que fariam a loucura de outros apredizes de feiticeiro como eu. Já passei os lábios por alguns Barcas Velhas, pelos Perâ Mancas quase todos, por um Vega Secilia, pelo Opus One, mas de todas essas vezes o fiz pelas mãos de alguns mestres que, pelo seu temperamento me prepararam para o que deveria estar á espera.
Os vinhos do Porto e os Licorosos em geral são matéria que por muito que goste, ainda estou a anos luz de poder apreciar e entender de forma consistente.
Tudo isto serve para explicar a nota de prova que escreverei de seguida, dividida em duas partes, com uma decalage de 24 horas.
Esperei muitos meses para abrir esta garrafa que me fora oferecida, na expectativa de encontrar o momento ideal, a circunstância, a companhia para celebrar este momento tão único. Contudo a verdade é que os momentos ideais são apenas um capricho de uma mente ociosa e assim, a decisão de ir em frente surgiu por ela própria. A companhia essa sim, não poderia ser mais ideal, quando as pessoas partilham as mesmas paixões.
Parecíamos dois putos a tentar vestir de responsabilidade de gente crescida todo o processo de abrir a garrafa e degustar o néctar aprisionado por tantos anos.
O lacre da garrafa já estava partido e a rolha aparentava não ter solidez suficiente para aguentar o ScrewPull, mas a necessidade faz o engenho e com muita persistência e cuidado lá conseguimos retirá-la, ainda que bastante danificada. A cortiça era de boa qualidade o que era por si só um bom augúrio.
Não fazia ideia do que esperar de um vinho que apesar de ser da colheita de 1871, poderá ter sido engarrafado anos mais tarde.
O Vinho em questão era uma produção particular de Joaquim Francisco dos Santos, com a designação autorizada de Vinho Velho do Douro.
O primeiro embate de nariz deixou-nos estarrecidos. Em vez do avinagrado que no fundo esperávamos encontramos um perfume marcado de frutos secos, com bastantes notas de nozes e alguns aromas a marmelo assado. O álcool quase não se sentia e á medida que foi abrindo o vinho foi libertando aromas mais subtis, limpos e bastante atraentes.
Na cor encontramos uma paleta a meio termo entre um o bronze e notas de cor de barro, numa limpidez e brilho surpreendentes para a idade e o estado de conservação da garrafa.
O primeiro gole desfez qualquer dúvida. Tratava-se de um excelente porto, com uma elegância do compromisso entre o álcool e a fruta. Um corpo elegante, ainda que com uma lágrima pouco marcada. Foi uma aposta ganha.

Romantically holpless como sou não consigo deixar de pensar na vida que este vinho viveu, nas mãos por que passou, das viagens que fez ao longo destes 137 anos. Gosto de pensar que foi feito com amor, porque foi assim que foi bebido, por quem ama o vinho e o próximo com a mesma lata, paixão e ingenuidade de criança. Sobreviveu á monarquia, á Instauração da Republica, á ditadura, a duas guerras mundiais, ao 25 de Abril, ao meu nascimento…para acabar aqui descansado ao meu lado enquanto escrevo estas pequeninas notas.
Assim vale a pena viver.

Um brinde a todos.

Sem comentários: