Théophile Gautier disse que “amar é admirar com o coração, e admirar é amar com o cérebro.”
Citado In “Estamos todos tão sozinhos” de Paulo Nogueira
Parei nesta frase porque me fez pensar. Automaticamente recapitulei as pessoas da minha vida, enumerando-as uma por uma num escrutínio vagaroso e crítico. O que fora que prendera tanta gente na gaveta das minhas memórias que em dias se atravanca a tal ponto de estravasar para a prateleira inferior, aquela que cai aos nossos pés quando sem pensar abrimos a porta de rompante, sem nada concreto a procurar?
Desde pequena que me deixo prender ás palavras dos outros. Desde muito pequena creio, porque recordo os boletins de avaliação da minha professora da primária no qual sempre referia aos meus pais, a estranha atitude da criança que preferia ler na sala ou ouvir a conversa dos adultos a brincar ao elástico ou à apanhada. Se não me falha a memória, deveria ter cerca de 10 anos quando “amei com o cérebro” pela primeira vez. Lembro o meu espanto e fascínio ao ouvir Miguel Torga a falar de trivialidades talvez, enquanto comia pastéis de bacalhau e bebia um copo de vinho verde, no café da rua que os meus pais frequentavam. Era um senhor, médico segundo sabia na altura que escrevia livros, dissera-me a minha mãe. E eu, sentada num banco alto de um balcão corrido tamborilava os pés na bancada, horas a fio num silêncio que assustava quem conhecia a minha incapacidade de estar calada. Ele falava bem. Era bonito, mas era a escolha das palavras como se fossem pedacinhos de ar multicolor que me prendia a respiração e soltava o espanto.
À medida que comecei a ler e a escolher os meus escritores favoritos confessava-me, ambiciosa, mas em segredo, que era uma escritora. Anos mais tarde, na minha pré-adolescência a minha mãe informava o velho escritor que eu também escrevia. Ele, olhando simplesmente para mim, disse: - fazes bem! Não entendi na altura porque um homem que tratava a literatura por tu, se bastaria numa frase tão simples, para tristeza do meu espírito candidato a novelista.
Com o tempo percebi que escrever era apenas uma necessidade como dormir, comer ou ter sexo. Faria parte de mim apenas porque era algo que não conseguia evitar.
Gosto de palavras. De palavras bonitas, de palavras como pessoas com personalidade, qualidades e mau feitio.
Gosto de conversar. Gosto de ouvir e aprender. Gosto de me prender. Esqueço com facilidade os rostos e os trejeitos das pessoas, mas registo em pedra dura, qual mandamento aquilo que outros me contaram ou ensinaram. Citações, títulos, estórias, segredos e desabafos.
Gosto tanto de conhecer pessoas pelas suas palavras que confesso que por diversas vezes me senti reticente em passar, neste universo blogosférico ou virtual, á presença física das pessoas. Tenho, nas minhas relações um pânico atávico de ficar sem assunto, de cair num silêncio ensurdecedor da falta de vontade de contar, de partilhar, de ensinar e aprender. Ficarmos mudos entre olhos sem saber, ou pior, sem querer comunicar.
Há quem assuma o medo nas suas relações amorosas da velhice, das doenças, da falta de pica para fazer amor, do corpo cansado e sem jeito. De dois velhos sentados a ver a vida a passar em flashback. A mim, assassina-me a imagem de um casal sentado numa esplanada a jantar em profundo silêncio, ou pior, com cada um a ler o seu livro.
Comer também é para mim falar. Deixar entrar e sair assuntos entre garfadas, que não raras vezes apenas servem de pretexto. O sublime? A boa companhia de uma longa conversa acompanhada de um vinho bailarino e sedutor, entre sussurros de uma comida feita com amor e acima de tudo com prazer.
De novo verifico que a minha teoria está correcta. É o amor do cérebro que perdura e tantas vezes só a custo se deixa matar. O do corpo envelhece, esbate-se como as fotografias fechadas num álbum no fundo do baú no alto do sótão. Talvez, para mim, seja a presença do objecto de paixão a evitar, para que não se me baralhe os sentidos do tacto e do cheiro.
Prometo que não ficaremos sem assunto, mesmo antes de ficarmos sem vida.
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