terça-feira, julho 31, 2007

continuação


Conseguia reter por segundos o momento que lhe mudou a forma, que a despiu de certezas, que apunhalou o destino de rosto destapado. Maria resiste em força a uma vontade de se deixar ir. Revolve as gavetas desarumadas à procura de um instante de sentidos e sentimentos que melhor possa descrever o que sente, o que a atrai como uma forma invasora mas gulosa. Desvia o olhar. Sente o coração disparar em todas as direcções, as pernas bambas que não respondem e uma sensação de predestinação que não quer aceitar.
Lutou com uma força que, em verdade não existia para não se deixar ficar presa com o rabo de fora, a outros olhos negros.

Deitada na relva junto ao rio, embrulhada pela musicalidade da água que bate nos seixos relembra vezes sem conta aquele instante. Abstrai-se do pensamento para inspirar as mimosas que lhe devolve uma infância solta pelos montes. Está no mesmo sitio de sempre, onde nunca quis estar.

Vê-se por fora. Fora da história. Fora de si. Analisa-se com uma imparcialidade cruel e não me responde. Nem quando me meto com ela, a gozo, a insulto. Não reage. Simplesmente não está ali. Voltou para a barcaça da vida que sonhou. Que teve na mão e abandonou. Era uma questão de sobrevivência. Desisto. Insisto. Não quero deixá-la lá. Sei que lhe faz mal. Que a amarga cada dia mais, numa estupidez sem nexo que não faz sentido naquela cabeça inteligente. Não entendo. Não tento. Não pergunto. Vai falar se quiser. Sei que não o fará.
Instala-se um silêncio desconfortável onde a dor se senta e torna-se parte interessada.

-Vamos embora amiga. Está a começar a chover e por muito que não me apeteça voltar para Lisboa e uma gripe poder ser a melhor desculpa para prolongar o caos do fim-de-semana. Não posso.

Nem me olha. Fica ali como quem reve o filme vezes sem conta. Mas continua a não estar lá. Já partiu à muito. Penso em Jimmy. Sinto pena da entrega desmesurada dele. Incondicional. Masoquista. Ele não sabe, não pressente que a mulher que se deita com ele não é Maria. É uma versão aproximada. Quase perfeita no molde em que se tornou.Ela esforça-se. Muito. Demasiado. Sente que lhe deve tudo e por isso ocupa-se a ser o que crê que ele quer.Desfaz-se em mimos exagerados. Trata dela com esmero para estar sempre linda para o receber quando chega cansado do trabalho. Absorve livros para ser a interlutora mais interessante. E despe-se com maestria para ser a amante mais fêmea.
Mas ela deseja-o num amor doce, incondicional que é construido sobre a admiração e amizade que sobrou de uma aventura quente, irresponsável, viciante.
É uma forma de amor, é disso que me tenta convencer cada vez que lhe grito as saudades que tenho da miuda gira, acelarada e louca que partilhava a vida comigo como telespectador de uma novela interactiva onde eu também participava.. Ainda o faço no papel de caixote do lixo de desabafos que ela desentope de tempos a tempos, a meu pedido e depois de alguns truques que conheço para a trazer de volta aquela existência.
São golpes sujos que aplico. Que sei que a fazem sofrer, mas são o único escape que lhe permite descambar um pouco, para se erguer de novo, um pouco mais consistente.

Representa tão bem que se convence a si mesma. Os outros estão demasiado ocupados para olhá-la, mas mesmo que o fizessem talvez não notassem diferenças. Os pontos de referência dela estão em mim.

Sem comentários: